Reinaldo Azevedo
17/01/2020 15h43
Bolsonaro fala a jornalistas às portas do Palácio da Alvorada no dia 15 de janeiro. Ele emula Goebbels todos os dias (Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)
Iria voltar ao trabalho na segunda. Antecipo. O tema exige. Roberto Alvim protagonizou o disparate final. Caiu quem jamais deveria ter ascendido não estivéssemos num hospício ideológico. Pergunta óbvia: ele se vai, mas as intenções e os valores do governo que o conduziu à secretaria de Cultura mudaram? Resposta igualmente óbvia: não!
À saída, Alvim sugere ter sido vítima de uma cilada. Fica a sugestão de que alguém soprou ao seu ouvido o trecho colado do discurso de Goebbels. Quem? Pode até haver a pessoa que lhe tenha passado a cola, mas, reitero, estamos lidando com um conjunto de signos. Deutschland über alles (A Alemanha acima de tudo). Brasil über alles. O Brasil acima de tudo. Nem o corte de cabelo do nosso condutor é original. Poucos reclamaram.
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo, ou então não será nada".
Trata-se, obviamente, de uma visão autoritária da cultura. O que significa uma "arte imperativa"? Quais seriam as "aspirações urgentes de nosso povo"? Qual povo? Essa "unidade", ancorada numa suposta vontade da maioria, representada pelo líder constitui o cerne do postulado de Jair Bolsonaro e daqueles que o seguem. Também o famoso "João 8:32", retirado do contexto, ganhou a sua interpretação nazistoide: "Conhecereis a verdade, e ela vos libertará".
A "verdade", no caso, é a palavra de Cristo. Na vulgata bolsonariana, trata-se da licença para discriminar negros, mulheres, índios e a população LGBT. Trata-se de uma divisa para criminalizar a divergência e transformar a oposição ao governo, de qualquer natureza — até as dissensões nascidas em seu próprio campo ideológico —, como um mal a ser extirpado.
Alvim parodiou Goebbels. Bolsonaro faz isso cotidianamente à porta do Palácio da Alvorada. Prestem atenção a este trecho:
"Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas!"
É o mesmo Goebbels a discursar numa grande manifestação em Berlim no dia 10 de fevereiro de 1933. Hitler estava no poder havia apenas 11 dias. O tom é de ameaça e retaliação. E ela chegou. Nós, os jornalistas independentes, somos tratados todos os dias pelo presidente como os "judeus insolentes", as "bocas mentirosas". Nem as respectivas mães dos repórteres são poupadas da fúria do "condutor".
A referência de Alvim a Goebbels é, obviamente, asquerosa, mas requer um contexto e algum conhecimento histórico. Há falas, no entanto, que dispensam o apelo à história para que caracterizem o mal em si. Querem ver?
"Não podemos abrir as portas para todo mundo. Alguém já viu algum japonês pedindo esmola? É uma raça que tem vergonha na cara! (…) "O pessoal aí embaixo [manifestantes] eu chamo de cérebro de ovo cozido. Não adianta botar a galinha, porque não vai sair pinto nenhum. Não sai nada daquele pessoal (…). Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais."
O então candidato Bolsonaro falou, num clube judaico — e conta, como se sabe, com o apoio organizado de parte considerável dessa comunidade — , sobre raças que têm e que não têm "vergonha na cara". Associou uma parcela da população negra a animais. Foi aplaudido, ovacionado, chamado de "mito".
Já é um clichê apelar a um texto do pastor Martin Niemöller (não é de Maiakovski). Na juventude, o religioso alemão chegou a flertar com o nazismo. Mudou radicalmente. Acabou preso e processado pelo regime em 1937:
"Quando os nazistas levaram os comunistas, eu me calei porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu me calei porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse".
Boa parte do público presente ao evento da Hebraica, no Rio, não protestou.
Alvim se vai. Mas e os que ficam?
O Brasil só sairá dessa lama moral quando negros, mulheres, LGBTs, índios e pessoas que dissentem também forem considerados judeus.
Antes que digam que a associação banaliza o Holocausto, observo que convém não banalizar nem aplaudir a discriminação e a cultura da violência. A política que buscou exterminar os judeus em particular nos remete, por contraste, ao que conseguimos produzir de melhor nas democracias: a universalidade de direitos fundamentais.
Só ela protege os que são e os que não são judeus.
- ** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL