García Márquez deixa a mulher, Mercedes Barcha Pardo, e dois filhos.
A trajetória de um gênio latino-americano
Aos 22 anos, Gabriel García Márquez tinha acabado de abandonar a Faculdade de Direito para se dedicar à vida de boêmio literato. Instalado em Barranquilla, no litoral caribenho, flanava por aí de camisa florida e bigode frondoso, lia e escrevia sem parar, sobrevivendo com os trocados que ganhava num jornal local. Um dia veio procurá-lo, na livraria onde batia ponto, uma senhora que ele a princípio não reconheceu. Era sua mãe. Vinha pedir ajuda para vender a casa dos avós, na cidadezinha colombiana de Aracataca, onde ele havia nascido, em 1927, e vivido até 8 anos de idade. O reencontro com a terra natal abriu os olhos do aspirante a escritor para o potencial literário de memórias de família e lendas populares, que alimentariam nas décadas seguintes a obra do ganhador do Nobel de Literatura de 1982. Em sua autobiografia, “Viver para contar”, de 2002, García Márquez recordou aquela viagem como a decisão mais importante de sua vida.
Criado pelos avós, ambos exímios contadores de histórias, García Márquez teve com eles as primeiras lições de narrativa. O avô, Nicolás Ricardo Márquez Mejía, um temido coronel que o neto só chamava de “Papalelo”, descortinou para ele o mundo das relações de poder. A avó, Tranquilina Iguarán, cheia de superstições e histórias de fantasmas, apresentou ao jovem as maravilhas e terrores do folclore. Em dezenas de livros de ficção e não ficção publicados ao longo de seis décadas de carreira, muitos dos quais se tornaram clássicos do século XX, como “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca”, “Amor nos tempos do cólera” e “Crônica de uma morte anunciada”, García Márquez expressou uma visão de mundo que abarcava tanto os meandros da política latino-americana quanto a dimensão fantástica da existência.
A capital de um universo ficcional
Esse estilo começou a se consolidar em seu primeiro romance, “A revoada”, publicado em 1955. Foi nele a primeira aparição da cidade fictícia de Macondo, que criou ainda sob o impacto do regresso a Aracataca. Assim como sua terra natal, Macondo era um povoado colombiano empobrecido, dominado por uma companhia bananeira, mas com um rico repertório de histórias locais. A cidade surgiu em vários outros livros do escritor, como “Ninguém escreve ao coronel” (1961) e “Cem anos de solidão” (1967).
Foi este último que projetou o nome de García Márquez no cenário mundial. Aos 40 anos, ele já havia lançado outros cinco livros de ficção, mas nunca tinha ganhado um tostão com literatura. Mantinha-se como jornalista, primeiro em vários veículos colombianos, como “El Universal”, “El Heraldo” e “El Espectador”, onde aproveitava as horas vagas para escrever ficção (nessa época descobriu Kafka, que o impressionou muito, pois não imaginava que era permitido escrever sobre coisas como um homem que vira uma barata). Depois foi correspondente na Europa, nos Estados Unidos e no México, onde se instalou no início dos anos 1960 com a mulher, Mercedes Barcha, e o filho Rodrigo. Na capital mexicana, em 1964, nasceu seu segundo filho, Gonzalo.
Foi nessa época, enquanto dirigia numa estrada mexicana, que o escritor vislumbrou aquela que seria a frase de abertura de “Cem anos de solidão”: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Gostava de dizer que, depois disso, deu um cavalo de pau, voltou para casa e se trancou pelos anos seguintes para escrever o romance que conta a história de sete gerações da família Buendía.
“Cem anos de solidão” acompanha a intrincada árvore genealógica dos Buendía, na qual o autor parece se divertir com a repetição de nomes (Aureliano, Amaranta, Remedio, José Arcadio), em uma narrativa repleta de personagens e situações fantásticas: o patriarca José Arcadio, fundador de Macondo; Úrsula Iguarán, a mulher que vive mais de 115 anos; José Arcadio Segundo, único sobrevivente do massacre dos grevistas da companha bananeira de Macondo; Maurício Babilônia, sempre envolto em uma nuvem de borboletas amarelas; ou o cigano Melquíades, cujos pergaminhos preveem glórias e tragédias da família.
Com mais de 30 milhões de exemplares vendidos em cerca de 35 idiomas, “Cem anos de solidão” se tornou não só o livro mais popular de García Márquez, mas também o emblema de uma geração da literatura latino-americana identificada com o rótulo do “realismo fantástico”. A partir de meados dos anos 1960, enquanto o continente ia sendo encoberto pela sombra de ditaduras militares, autores da região alcançaram uma projeção internacional inédita. Além do colombiano, fizeram parte do chamado “boom” da literatura latino-americana escritores como o argentino Julio Cortázar, o mexicano Carlos Fuentes, o cubano Alejo Carpentier e o peruano Mario Vargas Llosa.
Fidel: Identificação política e pessoal
A relação entre García Márquez e Vargas Llosa, também premiado com o Nobel em 2010, se tornou símbolo do “boom” e de suas contradições. A amizade inicial se desdobrou em admiração literária (o peruano publicou em 1971 o elogioso ensaio “García Márquez, história de um deicídio”), mas com o tempo os dois se afastaram, inclusive politicamente. Esquerdista na juventude, Vargas Llosa se alinhou ao neoliberalismo e chegou a concorrer à presidência do Peru, em 1990, quando foi derrotado por Alberto Fujimori. Admirador de primeira hora da Revolução Cubana, García Márquez se aproximou de Fidel Castro e defendeu o regime da ilha em várias ocasiões. Mas a divergência mais famosa entre os dois, em 1976, não teve fundo político: por ciúmes da mulher, Vargas Llosa deu um soco em García Marquez, que saiu com um olho roxo. Nunca mais se reconciliaram.
A atuação política de García Márquez rendeu-lhe admiradores e críticos. Muitos nunca o perdoaram por não denunciar os abusos do regime de Fidel, de quem se tornou amigo. Segundo o biógrafo inglês Gerald Martin, autor de “Gabriel García Márquez: uma vida", o líder cubano achava o escritor “pessimista e fantasioso”, mas gostava de suas observações políticas e sentia-se próximo dele por também ter crescido em uma região dominada pela United Fruit, multinacional americana de alimentos que inspirou a companhia bananeira de Macondo.
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