segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A morte de Edgar Froese, do Tangerine Dream

Por Jair Fonseca
A morte de Edgar Froese, aos 70 anos. Ele foi um dos fundadores do Tangerine Dream, uma das bandas alemãs pioneiras do rock experimental eletrônico (o "Krautrock"). Segue ao vivo, em 1975, na Catedral de Coventry, Inglaterra.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O perfil de Marco Archer por um jornalista que conversou com ele 4 dias na prisão



Nos bons tempos
Nos bons tempos
O reporter Renan Antunes de Oliveira entrevistou Marco Archer em 2005, numa prisão na Indonésia. Abaixo, seu relato:
O carioca Marco Archer Cardoso Moreira viveu 17 anos em Ipanema, 25 traficando drogas pelo mundo e 11 em cadeias da Indonésia, até morrer fuzilado, aos 53, neste sábado (17), por sentença da Justiça deste país muçulmano.
Durante quatro dias de entrevista em Tangerang, em 2005, ele se abriu para mim: “Sou traficante, traficante e traficante, só traficante”.
Demonstrou até uma ponta de orgulho: “Nunca tive um emprego diferente na vida”. Contou que tomou “todo tipo de droga que existe”.
Naquela hora estava desafiante, parecia acreditar que conseguiria reverter a sentença de morte.
Marco sabia as regras do país quando foi preso no aeroporto da capital Jakarta, em 2003, com 13,4 quilos de cocaína escondidos dentro dos tubos de sua asa delta. Ele morou na ilha indonésia de Bali por 15 anos, falava bem a língua bahasa e sentiu que a parada seria dura.
Tanto sabia que fugiu do flagrante. Mas acabou recapturado 15 dias depois, quando tentava escapar para o Timor do Leste. Foi processado, condenado, se disse arrependido. Pediu clemência através de Lula, Dilma, Anistia Internacional e até do papa Francisco, sem sucesso. O fuzilamento como punição para crimes é apoiado por quase 70% do povo de lá.
Na mídia brasileira, Marco foi alternadamente apresentado como “um garoto carioca” (apesar dos 42 anos no momento da prisão), ou “instrutor de asa delta”, neste caso um hobby transformado na profissão que ele nunca exerceu.
Para Rodrigo Muxfeldt Gularte, 42, o outro brasileiro condenado por tráfico, que espera fuzilamento para fevereiro, companheiro de cela dele em Tangerang, “Marco teve uma vida que merece ser filmada”.
Rodrigo até ofereceu um roteiro sobre o amigo à cineasta curitibana Laurinha Dalcanale, exaltando: “Ele fez coisas extraordinárias, incríveis.”
O repórter pediu um exemplo: “Viajou pelo mundo todo, teve um monte de mulheres, foi nos lugares mais finos, comeu nos melhores restaurantes, tudo só no glamour, nunca usou uma arma, o cara é demais.”
Para amigos em liberdade que trabalharam para soltá-lo, o que aconteceu teria sido “apenas um erro” do qual ele estaria arrependido.
Em 2005, logo depois de receber a sentença de morte num tribunal em Jacarta
Em 2005, logo depois de receber a sentença de morte num tribunal em Jacarta
Na versão mais nobre, seria a tentativa desesperada de obter dinheiro para pagar uma conta de hospital pendurada em Cingapura – Marco estaria preocupado em não deixar o nome sujo naquele país. A conta derivou de uma longa temporada no hospital depois de um acidente de asa delta. Ter sobrevivido deu a ele, segundo os amigos, um incrível sentimento de invulnerabilidade.
Ele jamais se livrou das sequelas. Cheio de pinos nas pernas, andava com dificuldade, o que não o impediu de fugir espetacularmente no aeroporto quando os policiais descobriram cocaína em sua asa delta.
Arriscou tudo ali. Um alerta de bomba reforçara a vigilância no aeroporto. Ele chegou a pensar em largar no aeroporto a cocaína que transportava e ir embora, mas decidiu correr o risco.
Com sua ficha corrida, a campanha pela sua liberdade nunca decolou das redes sociais. A mãe dele, dona Carolina, conseguiu o apoio inicial de Fernando Gabeira, na Câmara Federal, com voto contra de Jair Bolsonaro.
O Itamaraty e a presidência se mexeram cada vez que alguma câmera de TV foi ligada, mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
Mesmo aparentemente confiante, ele deixava transparecer que tudo seria inútil, porque falava sempre no passado, em tom resignado: “Não posso me queixar da vida que levei”.
Marco me contou que começou no tráfico ainda na adolescência, diretamente com os cartéis colombianos, levando coca de Medellín para o Rio de Janeiro. Adulto, era um dos capos de Bali, onde conquistou fama de um sujeito carismático e bem humorado.
A paradisíaca Bali é um dos principais mercados de cocaína do mundo graças a turistas ocidentais ricos que vão lá em busca de uma vida hedonista: praias deslumbrantes, droga fácil, farta — e cara.
O quilo da coca nos países produtores, como Peru e Bolívia, custa 1 000 dólares. No Brasil, cerca de 5 000. Em Bali, a mesma coca é negociada a preços que variam entre 20 000 e 90 000 dólares, dependendo da oferta. Numa temporada de escassez, por conta da prisão de vários traficantes, o quilo chegou a 300 000 dólares.
Por ser um dos destinos prediletos de surfistas e praticantes de asa delta, e pela possibilidade de lucros fabulosos, Bali atrai traficantes como Marco. Eles se passam por pessoas em busca de grandes ondas, e costumam carregar o contrabando no interior das pranchas de surf e das asas deltas. Archer foi pego assim. Tinha à mão, sempre que desembarcava nos aeroportos, um álbum de fotos que o mostrava voando, o que de fato fazia.
O homem preso por narcotráfico passou a maior parte da entrevista comigo chapado. O consumo de drogas em Tangerang era uma banalidade.
Pirado, Marco fazia planos mirabolantes – como encomendar de um amigo carioca uma nova asa, para quando saísse da cadeia.
Nos momentos de consciência, mostrava que estava focado na grande batalha: “Vou fazer de tudo para sair vivo desta”.
Marco era um traficante tarimbado: “Nunca fiz nada na vida, exceto viver do tráfico.” Gabava-se de não ter servido ao Exército, nem pagar imposto de renda. Nunca teve talão de cheques e ironizava da única vez numa urna: “Minha mãe me pediu para votar no Fernando Collor”.
A cocaína que ele levava na asa tinha sido comprada em Iquitos, no Peru, por 8 mil dólares o quilo, bancada por um traficante norte-americano, com quem dividiria os lucros se a operação tivesse dado certo: a cotação da época da mercadoria em Bali era de 3,5 milhões de dólares.
Marco me contou, às gargalhadas, sua “épica jornada” com a asa cheia de drogas pelos rios da Amazônia, misturado com inocentes turistas americanos. “Nenhum suspeitou”. Enfim chegou a Manaus, de onde embarcou para Jakarta: “Sair do Brasil foi moleza, nossa fiscalização era uma piada”.
O momento em que ele recebeu a confirmação da data do fuzilamento
O momento em que ele recebeu, nesta semana, a confirmação da data do fuzilamento
Na chegada, com certeza ele viu no aeroporto indonésio um enorme cartaz avisando: “Hukuman berta bagi pembana narkotik’’, a política nacional de punir severamente o narcotráfico.
“Ora, em todo lugar do mundo existem leis para serem quebradas”, me disse, mostrando sua peculiar maneira de ver as coisas: “Se eu fosse respeitar leis nunca teria vivido o que vivi”.
Ele desafiou o repórter: “Você não faria a mesma coisa pelos 3,5 milhões de dólares”?
Para ele, o dinheiro valia o risco: “A venda em Bali iria me deixar bem de vida para sempre” – na ocasião, ele não falou em contas hospitalares penduradas.
Marco parecia exagerar no número de vezes que cruzou fronteiras pelo mundo como mula de drogas: “Fiz mais de mil gols”. Com o dinheiro fácil manteve apartamentos em Bali, Hawai e Holanda, sempre abertos aos amigos: “Nunca me perguntaram de onde vinha o dinheiro pras nossas baladas”.
Marco guardava na cadeia uma pasta preta com fotos de lindas mulheres, carrões e dos apartamentos luxuosos, que seriam aqueles onde ele supostamente teria vivido no auge da carreira de traficante.
Num de seus giros pelo mundo ele fez um cursinho de chef na Suíça, o que foi de utilidade em Tangerang. Às vezes, cozinhava para o comandante da cadeia, em troca de regalias.
Eu o vi servindo salmão, arroz à piemontesa e leite achocolatado com castanhas para sobremesa. O fornecedor dos alimentos era Dênis, um ex-preso tornado amigão, que trazia os suprimentos fresquinhos do supermercado Hypermart.
Marco queria contar como era esta vida “fantástica” e se preparou para botar um diário na internet. Queria contratar um videomaker para acompanhar seus dias. Negociava exclusividade na cobertura jornalística, queria escrever um livro com sua experiência – o que mais tarde aconteceu, pela pena de um jornalista de São Paulo. Um amigo prepara um documentário em vídeo para eternizá-lo.
Foi um dos personagens de destaque de um bestseller da jornalista australiana Kathryn Bonella sobre a vida glamurosa dos traficantes em Bali — orgias, modelos ávidas por festas e drogas depois de sessões de fotos, mansões cinematográficas.
Diplomatas se mexeram nos bastidores para tentar comprar uma saída honrosa para Marco. Usaram desde a ajuda brasileira às vítimas do tsunami até oferta de incremento no comércio, sem sucesso. Os indonésios fecharam o balcão de negócios.
As execuções são assim
As execuções são assim
O assessor internacional de Dilma, Marco Aurélio Garcia, disse que o fuzilamento deixa “uma sombra” nas relações bilaterais, mas na lateral deles o pessoal não tá nem aí.
A mãe dele, dona Carolina, funcionária pública estadual no Rio, se empenhou enquanto deu para livrar o ‘garotão’ da enrascada, até morrer de câncer, em 2010.
As visitas dela em Tangerang eram uma festa para o staff da prisão, pra quem dava dinheiro e presentes, na tentativa de aliviar a barra para o filhão.
Com este empurrão da mamãe Marco reinou em Tangerang, nos primeiros anos – até ser transferido para outras cadeias, à espera da execução.
Eu o vi sendo atendido por presos pobres que lhe serviam de garçons, pedicures, faxineiros. Sua cela tinha TV, vídeo, som, ventilador, bonsais e, melhor ainda, portas abertas para um jardim onde ele mantinha peixes num laguinho. Quando ia lá, dona Carola dormia na cama do filho.
Marco bebia cerveja geladinha fornecida por chefões locais que estavam noutro pavilhão. Namorava uma bonita presa conhecida por Dragão de Komodo. Como ela vinha da ala feminina, os dois usavam a sala do comandante para se encontrar.
A namorada
A namorada
A malandragem carioca ajudou enquanto ele teve dinheiro. Ele fazia sua parte esbanjando bom humor. Por todos os relatos de diplomatas, familiares e jornalistas que o viram na cadeia de tempos em tempos, Marco, apelidado Curumim em Ipanema, sempre se mostrou para cima. E mantinha a forma malhando muito.
Para ele, a balada era permanente. Nos últimos anos teve várias mordomias, como celular e até acesso à internet, onde postou algumas cenas.
Um clip dele circulou nos últimos dias – sempre sereno, dizendo-se arrependido, pedindo a segunda chance: “Acho que não mereço ser fuzilado”.
Marco chegou ao último dia de vida com boa aparência, pelo menos conforme as imagens exibidas no Jornal Hoje, da Globo. Mas tinha perdido quase todos os dentes em sua temporada na prisão, como relatou a jornalista e escritora australiana. No Facebook, ela disse guardar boas recordações de Archer, e criticou a “barbárie” do fuzilamento.
Numa gravação por telefone, ele ainda dava conselhos aos mais jovens, avisando que drogas só podem levar à morte ou à prisão.
Sua voz estava firme, parecia esperar um milagre, mesmo faltando apenas 120 minutos pra enfrentar o pelotão de fuzilamento – a se confirmar, deixou esta vida com o bom humor intacto, resignado.
Sabe-se que ele pediu uma garrafa de uísque Chivas Regal na última refeição e que uma tia teria lhe levado um pote de doce-de-leite.
O arrependimento manifestado nas últimas horas pode ser o reflexo de 11 anos encarcerado. Afinal, as pessoas mudam. Ou pode ter sido encenação. Só ele poderia responder.
Para mim, o homem só disse que estava arrependido de uma única coisa: de ter embalado mal a droga, permitindo a descoberta pela polícia no aeroporto.
“Tava tudo pronto pra ser a viagem da minha vida”, começou, ao relatar seu infortúnio.
Foi assim: no desembarque em Jakarta, meteu o equipamento no raio x. A asa dele tinha cinco tubos, três de alumínio e dois de carbono. Este é mais rijo e impermeável aos raios: “Meu mundo caiu por causa de um guardinha desgraçado”, reclamou.
“O cara perguntou ‘por que a foto do tubo saía preta’? Eu respondi que era da natureza do carbono. Aí ele puxou um canivete, bateu no alumínio, fez tim tim, bateu no carbono, fez tom tom”.
O som revelou que o tubo estava carregado, encerrando a bem-sucedida carreira de 25 anos no narcotráfico.
Marco ainda conseguiu dar um drible nos guardas. Enquanto eles buscavam as ferramentas, ele se esgueirou para fora do aeroporto, pegou um prosaico táxi e sumiu. Depois de 15 dias pulando de ilha em ilha no arquipélago indonésio passou sua última noite em liberdade num barraco de pescador, em Lombok, a poucas braçadas de mar da liberdade.
Acordou cercado por vários policiais, de armas apontadas. Suplicou em bahasa que tivessem misericórdia dele.
No sábado, enfrentou pela última vez a mesma polícia, mas desta vez o pessoal estava cumprindo ordens de atirar para matar.
Foi o fim do Curumim.
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domingo, 18 de janeiro de 2015

sábado, 17 de janeiro de 2015

Discutindo Charlie: parte 2 - A Lei do Véu


Se existe uma coisa que eu aprendi nessa vida de militância e estudo é que é sempre uma péssima ideia quando homens determinam como devem se comportar as mulheres, quando ricos decidem o que é o melhor para os pobres, quando brancos falam sobre como se sentem os negros ou quando ocidentais imperialistas julgam ser capazes de sistematizar como pensam outros povos, que em geral foram (ou ainda são) colonizados por estas mesmas pessoas. Por isso, a coisa que mais me chamou a atenção nestes ultimos acontecimentos foi a quantidade enorme de homens brancos europeus que acreditam poder decidir os destinos políticos, opinar sobre como devem se portar, como se sentem e o que pensam as mulheres muçulmanas, geralmente de origem arabe ou africana. Essas decisões e julgamentos são feitos em todas as instâncias, seja quando a França promulga leis que falem sobre como mulheres muçulmanas devem se vestir, seja quando jornalistas publicam charges ou textos falando sobre a opressão que essas mulheres sofrem sem dar voz para que elas falem por si, seja quando comentaristas em blogs, jornais e redes sociais julgam que essas mulheres são apenas vítimas que devem ser salvas a qualquer custo.


Não é apenas uma questão de essas pessoas, na maioria dos casos, jamais terem se preocupado em ler, ouvir e entender o que essas mulheres dizem. É também um problema falar disso porque não se pode falar de uma experiência pessoal que não se conhece. Eu, como qualquer um de nós, tenho a obrigação moral de ouvir e aprender com o que dizem mulheres, negros, árabes, indígenas, gays, lésbicas e transgêneros, e mesmo aprendendo não posso falar por eles. É preciso entender até onde vai o limite da minha atuação. Todo movimento tem espaço para aliados, mas é importante saber quem é protagonista daquele discurso.

Por conta disso, antes de começar a falar sobre a lei do véu, quero fazer uma oferta e um pedido. Questões sobre mulheres são extremamente importantes de serem trabalhadas e expostas, mas na maior parte dos assuntos eu não tenho nenhuma legitimidade para falar sobre isso, e portanto convido qualquer mulher que quiser escrever sobre o tema ou temas correlatos que acreditem ter pertinência neste espaço a entrar em contato. Este é só um blog amador de um autor amador, e existem muitos outros espaços com mais legitimidade e estrutura pra receber textos, mas, querendo publicar, o espaço está aberto, e será uma contribuição valiosa pra a discussão geral, bem como para a educação pessoal deste blogueiro amador.

Pois bem:

O hijab no banco dos réus

Antes, um aviso importante: Não me cabe dizer se o hijab é bom ou mal, se é ou não opressivo. Essa discussão tem que ser (e está sendo) feita, mas não por mim, e sim pelas mulheres muçulmanas. Existe uma lista imensa de mulheres que discutem isso do ponto de vista teórico, que conhecem a história da sua religião e sociedade e que possuem a experiência pessoal necessária para tratar os assuntos que discutem. Dito isto, prossigamos.

Policial britânica vstindo hijab
Muito se tem falado sobre a opressão das mulheres muçulmanas, e criticas foram feitas ao meu texto "Por que não sou Charlie" a respeito da Lei do Véu. As pessoas que se incomodaram com esse ponto disseram que a lei não é discriminatória, pois ela não se refere apenas ao hijab, e sim a todos os símbolos religiosos considerados “ostensivos”, no intuito de proteger os “valores franceses” de “laicidade”. Essas pessoas estão certas e erradas ao mesmo tempo.

De fato, no papel ela se refere a qualquer símbolo. A lei proibe o uso de turbantes Sikh, os Quipás judaicos, oshijabs islâmicos e crucifixos que sejam grandes o suficiente para serem considerados “ostensivos”. Não vou discutir os ornamentos Sikh e judaicos, porque não tenho conhecimento pra isso. Falemos sobre lenços e cruzes.

De acordo com a Lei de Sarkozy, uma mulher cristã pode usar um crucifixo pequeno no pescoço, um escapulário, uma medalhinha da virgem maria ou qualquer outro símbolo, contanto que esse ornamento seja discreto. Uma mulher cristã não poderia assistir as aulas em roupas de freira, mas essa é uma possibilidade bastante improvável em escolas. Ainda, mesmo que uma cristã seja impedida pela lei de usar uma cruz de madeira de um palmo no pescoço, isso não tem grande impacto na vida religiosa dela, uma vez que nenhuma doutrina cristã coloca como obrigação religiosa o uso de cruzes ostensivas. Assim, essa lei se aplica à cristãos na teoria, mas na prática não.

É importante dizer que muitas mulheres muçulmanas optam por não usarem o hijab, por diversas razões distintas. Ainda assim, para muitas mulheres muçulmanas o uso do hijab é uma obrigação religiosa, e a Lei francesa impede que elas cumpram esse rito. Ninguém tem o direito de dizer pra essas mulheres usarem uma meia lua pequena no pescoço em substituição ao véu e passar pela lei. A crença dessas mulheres é de que elas devem usar o hijab em espaços públicos ou na frente de estranhos, e o que a lei diz é que essa crença não tem valor, que elas devem abandonar o que acreditam enquanto estão dentro da escola e voltar a praticar a sua fé dentro de casa.

Existe pressão de políticos, mídia e de parte da população francesa para que essa lei seja levada também para as universidades, proibindo que mulheres muçulmanas usem seus hijabs enquanto buscam conhecimento. Com isso, cria-se uma distinção entre crentes e não-crentes dentro do sistema educacional, fazendo com que essas mulheres sejam obrigadas a escolher entre a educação formal e a religião. Assim, ao invés de “integrar” todos sob o sistema “laico” francês, o que a lei faz é segregar os muçulmanos, aumentar o sentimento de rejeição dessa parcela já muito discriminada da sociedade, estigmatizar o islamismo e aumentar os índices de evasão escolar entre muçulmanos. Para uma menina muçulmana que queira usar seu véu, as escolhas são: pagar escolas particulares; estudar por correspondência; ou largar a escola.

Outra preocupação é que o banimento de hijabs de escolas públicas se estenda para outros espaços. É uma preocupação válida porque na prática isso já vem acontecendo. Há diversos casos de mães usando hijab que foram poibidas de esperar seus filhos na porta da escola; casos de garotas de véu que foram impedidas de fazer provas de ingresso para universidades; casos de bancos e academias que se recusaram permitir a entrada de mulheres usando hijab.

Em 2010 a candidata pelo partido de esquerda Nouveau Parti Anticapitaliste teve que se retirar da campanha e da vida pública após dura rejeição de membros de seu partido pelo fato de que ela usava um véu. Esse rejeição elimina a representatividade política de mulheres muçulmanas.


 Cada cabeça um Hijab

Diversos erros de análise são geralmente apontados quando se fala do hijab. Vamos apontar alguns dos mais comum:

  • As mulheres não deveriam ser obrigadas pelos pais/marido/mesquita a usar o véu”:
    Eu concordo totalmente com quem afirma isso, mas é um erro achar que essa é a regra para o uso do véu. Nos últimos dias, passei horas assistindo e lendo depoimentos de mulheres sobre o uso do véu, e nestes depoimentos ouvi o mesmo que ouvi de mulheres muçulmanas que conheci no Brasil, no Egito e na Palestina, sobre como uso foi uma escolha pessoal. Muitas mulheres dizem que optaram por usar o hijab, o niqab ou a burqaaté mesmo contra a vontade dos pais. Eu entendo que há toda a problematização da crítica feminista a respeito do que é de fato uma escolha pessoal e o que é imposição social, e essa é uma questão delicada pra ser tratada neste texto. O que posso dizer com certeza é que não cabe a mim, homem-branco-ocidental-ateu, como não cabe ao Sarkozy, que é homem-branco-ocidental-europeu-rico-racista, dizer pra essa mulher que a escolha dela é uma imposição. Quem deve fazer essa crítica é ela e os movimentos de mulheres que representam essa mulher. Voltaremos nisso mais adiante. 
  • Vai ver se as mulheres dos Países Muçulmanos/Afeganistão/Arabia Saudita/Paquistão estão felizes!”: Em primeiro lugar, não existem “as mulheres dos países muçulmanos” com um grupo único, porque os países muçulmanos não são um grupo homogêneo. São países diferentes, com suas próprias condições e contradições, culturas e formas de prática religiosa. Quando falamos sobre o véu na França essa distinção é ainda mais importante, uma vez que na França (assim como no Líbano, Egito, Palestina, Síria e na imensa maioria dos países muçulmanos) o uso do véu não é imposto por lei. Assim, não se pode comparar a situação de um país onde as mulheres são obrigadas a usar o véu com um país onde elas tem a garantia legal de poderem optar entre usar ou não usar. No caso da França, essas mulheres estão sujeitas a leis que as proíbem de usar seus véus em uma série de situações, independente das suas vontades.
  • Homens que dizem: "O Ocidente está salvando essas mulheres do obscurantismo e opressão do Islam":
    Ainda que muitas vezes haja alguma boa intenção, pouca coisa é mais infantil, machista e colonizadora do que o espírito de cavaleiro medieval salvando a pobre mulher incapaz e indefesa presa na masmorra do dragão. Mulheres ao redor do mundo todo tem problemas, sofrem opressões dos sistemas patriarcais que dominam a política, religião, mídia e senso comum das suas comunidades e lutam contra isso. Elas não precisam que homens as resgatem de seus problemas. Elas precisam que homens parem de decidir o que é bom pra elas, ouçam o que elas tem a dizer, parem de criar obstaculos para a participação política e intelectual delas e deixem de rir de estereótipos bestas. Se esses homens quiserem realmente ajudar, um bom modo de se tornarem aliados é ouvindo o que elas dizem sem questionar a legitimidade de uma mulher sobre a própria narrativa.
Kulsoom Abdullah, americana de origem paquistanesa, se classificou para o Campeonato Americano de Levantamento de Peso, mas foi proibida de participar por se recusar a retirar o véu. Ela é também PhD em Engenharia da Computação. Ela não é uma vitima frágil e indefesa.