consigo ser amigo de imbecis que se fanatizaram até a ruptura”
Por: Reinaldo Azevedo
Publicada: 08/12/2017 - 15:37
Leiam o texto que João Pereira Coutinho escreve na Folha. Expressa aquilo em que acredito.
Sim, perdi amigos por causa da política. Não ganhei um só por causa dela. Sempre que a amizade se estabeleceu, como escreveu Mário Faustino sobre o amor, isso se deu “Por cima de qualquer muro de credo, / Por cima de qualquer fosso de sexo.” Gosto das pessoas em razão do que Coutinho chama “outras lealdades primárias”, a saber (ele cita algumas): “a amizade, o amor, a compaixão, a decência etc”.
Jamais rompi ou romperia com amigos em razão de divergências ideológicas, mas os perdi por causa delas (ou de motivações ainda mais subalternas).
A política, quando bem exercitada, estou convencido, é a mais complexa forma de relacionamento humano. Quando menos porque põe nossas crenças e convicções em confronto com a realidade. Reconhecer que a concessão que faz avançar o jogo é, muitas vezes, a melhor expressão do princípio é um exercício de maturidade.
Já fui dormir amigo de pessoas que passaram a me atacar no dia seguinte até para conseguir uma vaga no mercado de ideias — ou das “ideias de mercado”; “mercadistas” talvez…
Tenho raiva? Não! Já tive mágoa. Hoje, tenho pena.
Romper com um amigo por causa da política amesquinha, de saída, a política. E expõe uma alma incompatível com as “lealdades primárias”, como “amizade, amor, compaixão, decência”…
E, numa lista como essa, é preciso acrescentar a “coragem”.
Leiam o artigo de Coutinho.
*
Dois amigos brasileiros, que conheço há mais de quinze anos, cortaram relações por causa da política. Quando soube do assunto, ri alto. Pensava que era piada.
Não era. Eles levaram as diferenças ideológicas a sério e se afastaram, depois de discussões feias. Hoje, são dois estranhos na mesma cidade.
O caso representa um problema para mim. Não, obviamente, porque gosto de ambos e lamento o afastamento. Muito menos porque, a partir de agora, terei que me encontrar separadamente com eles. Mas porque eu próprio não sei se consigo continuar amigo de dois imbecis que se fanatizaram até à ruptura.
Entendo que as pessoas tenham as suas preferências ideológicas. Também tenho as minhas.
Mas quem coloca a política à frente de outras lealdades primárias —a amizade, o amor, a compaixão, a decência etc.— revela uma perturbação emocional que está para além da minha tolerância. Será que eles não leram Isaiah Berlin (1090-1997)?
O filósofo morreu há precisamente 20 anos e a sua obra, vasta e heterogênea, não é possível de resumir em breves linhas. Mas há uma ideia recorrente que atravessa os seus textos —Berlin escreveu sobretudo ensaios— e que me parece mais importante do que nunca, sobretudo nestes tempos de retardamento intelectual: o pensamento monista é nocivo em política.
Por monismo, Berlin entendia toda a teoria filosófica que acredita na existência de uma solução —uma “solução final”, digamos— para qualquer problema da existência humana.
A tradição racionalista do Ocidente assenta nessa máxima: se existem problemas verdadeiros, então só existe uma resposta verdadeira para esses problemas. Consequentemente, cabe aos homens encontrar a chave da história e organizar a sociedade de acordo com a verdade revelada.
O mérito de Berlin é duplo: primeiro, ao rebelar-se contra essa visão monista, que esquece a diversidade da natureza humana nos seus desejos e fins.
E, em segundo lugar, ao mostrar por que motivo essa visão é uma falácia conceitual e tantas vezes mortal: o monismo, sobretudo quando se expressa em utopias (de esquerda ou de direita, não interessa), parte sempre do pressuposto de que os valores mais caros à existência social podem conviver perfeita e harmoniosamente.
Não podem, não. Faz parte da natureza dos valores eles entrarem em conflito. Pior: os valores podem ser incompatíveis entre si e, às vezes, incomensuráveis, ou seja, podem existir situações em que simplesmente não sabemos qual o valor mais importante.
Será a liberdade? A igualdade? A justiça? Nenhum deles? Só fanáticos, ou então cadáveres, nunca experimentaram a agonia da escolha.
A vida é um caos. E nós, macaquitos ligeiramente mais evoluídos, fazemos o que podemos: compromissos entre valores; equilíbrios frágeis entre concepções rivais da vida. Assim é nas nossas existências privadas. E a coisa piora nas existências públicas. A política não é um jogo de soma zero. É uma negociação permanente.
Isaiah Berlin ensina isso. Tal como Montaigne ou David Hume já tinham ensinado antes dele. Aliás, quando me escrevem a pedir dicas bibliográficas, Montaigne e Hume são os dois nomes imediatos que coloco no topo da lista de qualquer pessoa civilizada.
Os meus amigos, lamento dizer, deixaram de ser pessoas civilizadas. São dois selvagens, enamorados por eles próprios, que acreditam genuinamente que só um deles é o Napoleão.
Boa noite e boa sorte, rapazes. Terei saudades de um passado que já não volta.
TAGSAMIZADEÉTICA NA POLÍTICA
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