Folha dá quase uma página a Boulos; ele a usa para dividir o país entre esquerdistas e golpistas e denunciar a ‘profunda recessão’!
Por: Reinaldo Azevedo
Publicada: 07/02/2018 - 16:15
Não se reclame que a imprensa, esta que os idiotas chamam “tradicional”, não dá espaço para as esquerdas. A Folha de hoje, usando a medida da versão impressa, publica uma entrevista de quase uma página com Guilherme Boulos, o chefão do MTST. E ela está disponível, claro!, na versão online. Pode chegar a milhões.
O espaço foi ocupado não apenas pelo líder de uma causa, mas por um potencial candidato à Presidência da República. Eis a chance de fazer com que suas ideias vão além do nicho militante e das palavras de ordem do chamado “calor da luta”. Mas quê…
Não vou escrever que Boulos é o Jair Bolsonaro “do outro lado” porque seria injusto com os dois. O líder do MTST precisa ter uma coragem física — sim, aquela tal, em sentido tradicional — que o pré-candidato da extrema-direita nunca precisou demonstrar ou exercitar. Quando no Exército, o maior inimigo que teve de enfrentar, tudo indica, foram as aulas de história; como candidato, o funcionamento da economia. De bate-pronto, ele ainda não decorou o que é tripé macroeconômico. Para assuntos dessa complexidade, o negócio é falar com Paulo Guedes. A tarefa do “Mito” é propor questões de alta complexidade moral, a saber: “Quero ver se você é contra porte de armas se alguém ameaça a sua mãe…” Ora, nós sabemos que todos os absolutos são relativos quando se põe a mãe no meio, não é mesmo?
Por outro lado, a candidatura de Bolsonaro efetivamente existe; a de Boulos não. Aquele que já disse, com incrível pertinência, que o estupro é um merecimento a que só as bonitas estão sujeitas (embora ele próprio não seja um estuprador — que bom!) terá mesmo alguns milhões de votos, e seus admiradores nem querem saber quem é aquele tal Guedes. Que ele seja o mordomo invisível a administrar a casa, ora essa! Gostam de Bolsonaro como autor de ditirambos exaltando a própria valentia — a sua valentia contra os perigosos monstros do comunismo que se escondem debaixo de sua cama, leitor amigo, embora você deles não se dê conta. Cuidado ao levantar à noite para fazer xixi… Você pode atravessar o portal e entrar no mundo das “stranger things”. O líder torna simples o mundo complexo. Pensem bem: sem essa conversa de “direitos humanos pra bandido”, o país seria ou não melhor? Sigamos.
Volto ao outro B, o Boulos. Quase uma página para o rapaz dizer o que pensa sobre o Brasil, a vida, a política… A melhor resposta, a mais encantadora, a mais espetacular, é esta, quando ele tenta explicar quais são as diferenças com o PT. Prestem atenção:
“Se foi possível ter no passado um ‘ganha-ganha’, ganhavam o andar de cima e o andar de baixo, hoje não é mais. A economia está numa recessão profunda, e a sociedade está polarizada. A única forma de assegurar direitos sociais e ter um projeto popular é enfrentar privilégios. Há uma encruzilhada no Brasil. Não é mais possível reeditar acordos nem composições sociais do passado”.
“Se foi possível ter no passado um ‘ganha-ganha’, ganhavam o andar de cima e o andar de baixo, hoje não é mais. A economia está numa recessão profunda, e a sociedade está polarizada. A única forma de assegurar direitos sociais e ter um projeto popular é enfrentar privilégios. Há uma encruzilhada no Brasil. Não é mais possível reeditar acordos nem composições sociais do passado”.
Admitamos. Parte considerável do eleitorado de direita foi sequestrada pela mixuruquice ágrafa do bolsonarismo. Mas vejam acima o que é o pensamento de esquerda. Bem, então Boulos, o esquerdista radical, acredita que, em algum momento do passado ao menos, foi possível — vou usar as categorias com as quais, em tese, ele opera — conciliar os interesses de classes opostas, traduzidos na infeliz metáfora “andar de cima/andar de baixo”. Nota: toda metáfora tem de carregar, com significado novo, o sentido denotativo, original, das palavras. Desde quando, nos prédios, o morador do andar de cima tem mais privilégios do que o de baixo? No meu bairro, por exemplo, por razões que não vêm ao caso agora, os andares mais baixos são os mais procuradores — e, pois, os mais valorizados… Mas sigamos.
Se a conciliação foi possível antes, segundo o próprio Boulos, por que não seria agora? Ele aponta a causa: “A economia está numa recessão profunda”. Como? O país deve crescer neste ano 3,5% pelo menos. Recessão profunda eram aqueles 3,6% de encolhimento produzidos por Dilma, que se seguia a outro encolhimento, de 3,8%, que vinha à esteira de expansão praticamente zero no ano anterior. E o desastre não decorreu da aplicação das “políticas de direita” ou dirigidas ao “andar de cima” (sempre empregando a linguagem de Boulos), mas justamente das escolhas petistas que supostamente beneficiavam o “andar de baixo”.
Aqui e ali, “intelectuais” de esquerda já tentaram fazer de Boulos um novo Lula. Procurem outro. Este é ruim demais. Mais adiante, na entrevista, ao admitir que sua candidatura teria dificuldades de emplacar, ele faz o seguinte diagnóstico do campo adversário:
“Que nome eles têm? É o Bolsonaro? Não dura duas semanas. É o Geraldo Alckmin, que empurra, empurram, e não decola? É o Luciano Huck, o candidato da Globo, de programa de auditório, para governar o Brasil? Essa eleição não será fácil nem para um projeto de esquerda nem para os que deram o golpe”.
“Que nome eles têm? É o Bolsonaro? Não dura duas semanas. É o Geraldo Alckmin, que empurra, empurram, e não decola? É o Luciano Huck, o candidato da Globo, de programa de auditório, para governar o Brasil? Essa eleição não será fácil nem para um projeto de esquerda nem para os que deram o golpe”.
Quase uma página para Boulos expor seu pensamento, e ele divide o país entre um “projeto de esquerda” e os golpistas. Logo, quem não votar no tal projeto é defensor do golpe — vale dizer: a maioria do povo brasileiro. Temos, ora vejam!, um povo golpista!
Observem que um mesmo “eles” estaria por trás de nomes como Bolsonaro, Alckmin e Huck. Todos esses a serviço da mesma causa e dos mesmos agentes malignos e… golpistas!
Uma nota: a palavra “projeto” associada à “esquerda” tem uma impagável graça involuntária. Alguém aí poderia citar um “projeto de esquerda” que, tendo se tornado realidade, deu certo e garantiu a felicidade dos indivíduos? Mas a palavra “projeto” é um fetiche da turma. Sabem por que a empregam? Porque a promessa esquerdista nunca será cumprida, será sempre um devir. O “projeto de esquerda” da União Soviética, por exemplo, durou 74 anos. Estima-se em 35 milhões o número de assassinatos na tentativa de implementá-lo. Bem, não deu certo. Já o “projeto de esquerda” chinês matou o dobro: 70 milhões. A China “deu certo”. É uma ditadura feroz, mas não é mais “projeto de esquerda”. Trata-se de realidade capitalista — capitalismo de Estado.
Do ponto de vista ideológico, Boulos, coitado!, é um desorientado. Não será um novo Lula no campo da esquerda nem depois de dez reencarnações. Pode-se amar ou odiar o que diz o chefão petista, mas pensamento lógico, convenham, ele sempre teve. Boulos sabe organizar um movimento, é inequívoco, que assume, frequentemente, características de milícia. E só. É incapaz de ter uma visão de conjunto do país, pouco importa se certa ou errada — o que Lula tem desde quando sindicalista. Errada. Mas tem.
Nesta medida, na absoluta falta do que dizer, não há dúvida de que Boulos e Bolsonaro se igualam.
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