domingo, 18 de janeiro de 2015

sábado, 17 de janeiro de 2015

Discutindo Charlie: parte 2 - A Lei do Véu


Se existe uma coisa que eu aprendi nessa vida de militância e estudo é que é sempre uma péssima ideia quando homens determinam como devem se comportar as mulheres, quando ricos decidem o que é o melhor para os pobres, quando brancos falam sobre como se sentem os negros ou quando ocidentais imperialistas julgam ser capazes de sistematizar como pensam outros povos, que em geral foram (ou ainda são) colonizados por estas mesmas pessoas. Por isso, a coisa que mais me chamou a atenção nestes ultimos acontecimentos foi a quantidade enorme de homens brancos europeus que acreditam poder decidir os destinos políticos, opinar sobre como devem se portar, como se sentem e o que pensam as mulheres muçulmanas, geralmente de origem arabe ou africana. Essas decisões e julgamentos são feitos em todas as instâncias, seja quando a França promulga leis que falem sobre como mulheres muçulmanas devem se vestir, seja quando jornalistas publicam charges ou textos falando sobre a opressão que essas mulheres sofrem sem dar voz para que elas falem por si, seja quando comentaristas em blogs, jornais e redes sociais julgam que essas mulheres são apenas vítimas que devem ser salvas a qualquer custo.


Não é apenas uma questão de essas pessoas, na maioria dos casos, jamais terem se preocupado em ler, ouvir e entender o que essas mulheres dizem. É também um problema falar disso porque não se pode falar de uma experiência pessoal que não se conhece. Eu, como qualquer um de nós, tenho a obrigação moral de ouvir e aprender com o que dizem mulheres, negros, árabes, indígenas, gays, lésbicas e transgêneros, e mesmo aprendendo não posso falar por eles. É preciso entender até onde vai o limite da minha atuação. Todo movimento tem espaço para aliados, mas é importante saber quem é protagonista daquele discurso.

Por conta disso, antes de começar a falar sobre a lei do véu, quero fazer uma oferta e um pedido. Questões sobre mulheres são extremamente importantes de serem trabalhadas e expostas, mas na maior parte dos assuntos eu não tenho nenhuma legitimidade para falar sobre isso, e portanto convido qualquer mulher que quiser escrever sobre o tema ou temas correlatos que acreditem ter pertinência neste espaço a entrar em contato. Este é só um blog amador de um autor amador, e existem muitos outros espaços com mais legitimidade e estrutura pra receber textos, mas, querendo publicar, o espaço está aberto, e será uma contribuição valiosa pra a discussão geral, bem como para a educação pessoal deste blogueiro amador.

Pois bem:

O hijab no banco dos réus

Antes, um aviso importante: Não me cabe dizer se o hijab é bom ou mal, se é ou não opressivo. Essa discussão tem que ser (e está sendo) feita, mas não por mim, e sim pelas mulheres muçulmanas. Existe uma lista imensa de mulheres que discutem isso do ponto de vista teórico, que conhecem a história da sua religião e sociedade e que possuem a experiência pessoal necessária para tratar os assuntos que discutem. Dito isto, prossigamos.

Policial britânica vstindo hijab
Muito se tem falado sobre a opressão das mulheres muçulmanas, e criticas foram feitas ao meu texto "Por que não sou Charlie" a respeito da Lei do Véu. As pessoas que se incomodaram com esse ponto disseram que a lei não é discriminatória, pois ela não se refere apenas ao hijab, e sim a todos os símbolos religiosos considerados “ostensivos”, no intuito de proteger os “valores franceses” de “laicidade”. Essas pessoas estão certas e erradas ao mesmo tempo.

De fato, no papel ela se refere a qualquer símbolo. A lei proibe o uso de turbantes Sikh, os Quipás judaicos, oshijabs islâmicos e crucifixos que sejam grandes o suficiente para serem considerados “ostensivos”. Não vou discutir os ornamentos Sikh e judaicos, porque não tenho conhecimento pra isso. Falemos sobre lenços e cruzes.

De acordo com a Lei de Sarkozy, uma mulher cristã pode usar um crucifixo pequeno no pescoço, um escapulário, uma medalhinha da virgem maria ou qualquer outro símbolo, contanto que esse ornamento seja discreto. Uma mulher cristã não poderia assistir as aulas em roupas de freira, mas essa é uma possibilidade bastante improvável em escolas. Ainda, mesmo que uma cristã seja impedida pela lei de usar uma cruz de madeira de um palmo no pescoço, isso não tem grande impacto na vida religiosa dela, uma vez que nenhuma doutrina cristã coloca como obrigação religiosa o uso de cruzes ostensivas. Assim, essa lei se aplica à cristãos na teoria, mas na prática não.

É importante dizer que muitas mulheres muçulmanas optam por não usarem o hijab, por diversas razões distintas. Ainda assim, para muitas mulheres muçulmanas o uso do hijab é uma obrigação religiosa, e a Lei francesa impede que elas cumpram esse rito. Ninguém tem o direito de dizer pra essas mulheres usarem uma meia lua pequena no pescoço em substituição ao véu e passar pela lei. A crença dessas mulheres é de que elas devem usar o hijab em espaços públicos ou na frente de estranhos, e o que a lei diz é que essa crença não tem valor, que elas devem abandonar o que acreditam enquanto estão dentro da escola e voltar a praticar a sua fé dentro de casa.

Existe pressão de políticos, mídia e de parte da população francesa para que essa lei seja levada também para as universidades, proibindo que mulheres muçulmanas usem seus hijabs enquanto buscam conhecimento. Com isso, cria-se uma distinção entre crentes e não-crentes dentro do sistema educacional, fazendo com que essas mulheres sejam obrigadas a escolher entre a educação formal e a religião. Assim, ao invés de “integrar” todos sob o sistema “laico” francês, o que a lei faz é segregar os muçulmanos, aumentar o sentimento de rejeição dessa parcela já muito discriminada da sociedade, estigmatizar o islamismo e aumentar os índices de evasão escolar entre muçulmanos. Para uma menina muçulmana que queira usar seu véu, as escolhas são: pagar escolas particulares; estudar por correspondência; ou largar a escola.

Outra preocupação é que o banimento de hijabs de escolas públicas se estenda para outros espaços. É uma preocupação válida porque na prática isso já vem acontecendo. Há diversos casos de mães usando hijab que foram poibidas de esperar seus filhos na porta da escola; casos de garotas de véu que foram impedidas de fazer provas de ingresso para universidades; casos de bancos e academias que se recusaram permitir a entrada de mulheres usando hijab.

Em 2010 a candidata pelo partido de esquerda Nouveau Parti Anticapitaliste teve que se retirar da campanha e da vida pública após dura rejeição de membros de seu partido pelo fato de que ela usava um véu. Esse rejeição elimina a representatividade política de mulheres muçulmanas.


 Cada cabeça um Hijab

Diversos erros de análise são geralmente apontados quando se fala do hijab. Vamos apontar alguns dos mais comum:

  • As mulheres não deveriam ser obrigadas pelos pais/marido/mesquita a usar o véu”:
    Eu concordo totalmente com quem afirma isso, mas é um erro achar que essa é a regra para o uso do véu. Nos últimos dias, passei horas assistindo e lendo depoimentos de mulheres sobre o uso do véu, e nestes depoimentos ouvi o mesmo que ouvi de mulheres muçulmanas que conheci no Brasil, no Egito e na Palestina, sobre como uso foi uma escolha pessoal. Muitas mulheres dizem que optaram por usar o hijab, o niqab ou a burqaaté mesmo contra a vontade dos pais. Eu entendo que há toda a problematização da crítica feminista a respeito do que é de fato uma escolha pessoal e o que é imposição social, e essa é uma questão delicada pra ser tratada neste texto. O que posso dizer com certeza é que não cabe a mim, homem-branco-ocidental-ateu, como não cabe ao Sarkozy, que é homem-branco-ocidental-europeu-rico-racista, dizer pra essa mulher que a escolha dela é uma imposição. Quem deve fazer essa crítica é ela e os movimentos de mulheres que representam essa mulher. Voltaremos nisso mais adiante. 
  • Vai ver se as mulheres dos Países Muçulmanos/Afeganistão/Arabia Saudita/Paquistão estão felizes!”: Em primeiro lugar, não existem “as mulheres dos países muçulmanos” com um grupo único, porque os países muçulmanos não são um grupo homogêneo. São países diferentes, com suas próprias condições e contradições, culturas e formas de prática religiosa. Quando falamos sobre o véu na França essa distinção é ainda mais importante, uma vez que na França (assim como no Líbano, Egito, Palestina, Síria e na imensa maioria dos países muçulmanos) o uso do véu não é imposto por lei. Assim, não se pode comparar a situação de um país onde as mulheres são obrigadas a usar o véu com um país onde elas tem a garantia legal de poderem optar entre usar ou não usar. No caso da França, essas mulheres estão sujeitas a leis que as proíbem de usar seus véus em uma série de situações, independente das suas vontades.
  • Homens que dizem: "O Ocidente está salvando essas mulheres do obscurantismo e opressão do Islam":
    Ainda que muitas vezes haja alguma boa intenção, pouca coisa é mais infantil, machista e colonizadora do que o espírito de cavaleiro medieval salvando a pobre mulher incapaz e indefesa presa na masmorra do dragão. Mulheres ao redor do mundo todo tem problemas, sofrem opressões dos sistemas patriarcais que dominam a política, religião, mídia e senso comum das suas comunidades e lutam contra isso. Elas não precisam que homens as resgatem de seus problemas. Elas precisam que homens parem de decidir o que é bom pra elas, ouçam o que elas tem a dizer, parem de criar obstaculos para a participação política e intelectual delas e deixem de rir de estereótipos bestas. Se esses homens quiserem realmente ajudar, um bom modo de se tornarem aliados é ouvindo o que elas dizem sem questionar a legitimidade de uma mulher sobre a própria narrativa.
Kulsoom Abdullah, americana de origem paquistanesa, se classificou para o Campeonato Americano de Levantamento de Peso, mas foi proibida de participar por se recusar a retirar o véu. Ela é também PhD em Engenharia da Computação. Ela não é uma vitima frágil e indefesa.

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